sexta-feira, 12 de setembro de 2008

Cidade das almas (Gazeta do Povo, 19/07/03)




"É foto pra calunga?", perguntou o caboclo Serra Negra, incorporado em seu "burro" habitual. No dialeto enrolado da entidade, a língua portuguesa se embaralha e quase some sob um sotaque indígena indecifrável. O charuto sempre nos beiços também não favorece a comunicação entre o espírito e os encarnados que o consultam. Na verdade, o velho só queria saber se o retrato que tirariam de Mãe Alice – senhora cujo corpo, há 50 anos, eventualmente lhe serve de moradia – seria usado para enfeitar o seu túmulo. Alguém na assistência explica: "É para sair no jornal". Tranqüilizado, Serra Negra ri e faz pose de autoridade. É ele quem manda no Centro Espírita de Umbanda Pai Cacique da Pedra Preta, no bairro Santa Quitéria.Permissão concedida, a fotografia é feita. O índio morto também não acha ruim dar entrevista. De qualquer maneira, faz questão de registrar sua opinião: reportagem só serve para "especular a vida dos outros". E, no caso, especular a vida da mãe-de-santo curitibana Alice Francisca de Vasconcellos.Filha de Ogum e Xangô, ela é do tempo em que, para escapar da repressão policial, se "acendia vela na valeta"; do "tempo do Chico Bóia", umbandista pioneiro no Paraná, fundador de um famoso terreiro no Tingüi, ainda na primeira metade do século passado. Em 1950, Alice, na época cardecista da "mesa branca", foi levada pelo irmão à casa da Mãe Iridan Ferreira, na Rua João Negrão, onde se fazia um serviço em homenagem ao finado padrasto da moça. Mal chegou, botaram-na para tomar passe. Não demorou para que os santos baixassem todos. Alice foi apresentada, então, ao Pai Cacique e ao Pantera Negra, conheceu os caboclos Girassol e Juraci. Por intermédio deles, anunciou-se a sua mediunidade privilegiada. Dois anos depois, já iniciada nos ritos, montou o centro que, até hoje, mantém no Santa Quitéria.Lá, nas noites de sexta, promovem-se os trabalhos. O chão do terreiro, como convém, é coberto por areia da beira do mar, trazida anualmente de Praia de Leste. Na corrente, dez cambonos – os auxiliares – servem às entidades. A platéia varia. De 20 a 30 pessoas. Mãe Alice não quer incomodar a vizinhança. Por isso, não há batuque de atabaque. Apenas canto de pontos e batida de palmas, nunca ultrapassando o limite de horário das 22 horas. Tudo com discrição e respeito, ela garante, sem maiores alardes. "A umbanda não é circo nem cinema que precise de publicidade", diz. "Aqui não tem amarração. Não se separa e não se junta." Mãe Alice também não admite o sacrifício de animais nos seus cultos, expediente tradicional que, além de provocar a antipatia agressiva dos ambientalistas, ainda fomenta parte do preconceito da sociedade cristã contra os praticantes de umbanda e candomblé."Quantos bichos a gente mata no mundo, por dia, para comer?", provoca Pai Silveira de Oxalá. Ele defende, como muitos de sua religião, a prática de matanças rituais: "Os bichos morrem por uma razão especial. Antes do sacrifício, a gente reza durante três dias para que se abençoe e prepare o espírito do animal". Iriberto Alves da Silveira, catarinense de Campos Novos, é o presidente da Suprema Ordem de Umbanda e Candomblé do Brasil (SOUCB), uma das diversas instituições que tentam botar ordem no mafuá litúrgico que rege os cultos afro país afora, organizando censos e cadastramentos, oferecendo cursos e protegendo os fiéis de possíveis charlatanices. De seu escritório no Boa Vista, Pai Silveira controla terreiros de dez estados brasileiros. No amplo terreno que abriga a empresa, ergue-se a Tenda de Umbanda Ogum Megê, cedida para festas de grupos filiados e cercada por vários ariaxés ou assentamentos de santos, quartos ou casinhas onde os orixás dormem, comem e recebem oferendas. Há, também, no jardim, um "cruzeiro das almas". A construção em concreto imita uma grande sepultura: pendurado na cruz, um par de chifres bovinos; sobre a laje estilizada, muitos "fetiches do calunga", como velas e arranjos florais. Silveira explica: "Vindo aqui, o povo evita a realização de rituais nos cemitérios e, principalmente, o constrangimento que isso causa a todos". A precaução dos praticantes de umbanda e candomblé procede. Em especial devido ao crescimento do poderio de algumas igrejas evangélicas neopentecostais que, abertamente, promovem uma campanha predatória de demonização das religiões de origem africana. Mesmo assim, a quantidade de freqüentadores de centros não teria sofrido qualquer diminuição. Silveira diz que, em 1983, Curitiba e região metropolitana já contariam com cerca de 3.580 terreiros, de acordo com um levantamento feito pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Fiscais da SOUCB, porém, teriam chegado à conclusão de que, atualmente, esse número seria de aproximadamente sete mil centros, o dobro do contabilizado 20 anos atrás. O presidente da ordem esclarece: "São dados subjetivos e não-oficiais. Muitos desses ‘terreiros’ são garagens ou cômodos aumentados. Procuramos evitar que esses lugares se transformem em arapucas". Segundo funcionários do IBGE, no entanto, o instituto nunca realizou qualquer pesquisa relacionada ao assunto. Estimativas de estudiosos de religião, em todo caso, indicam que pelo menos um terço do povo brasileiro freqüenta um terreiro espírita.Pai Silveira conta que, no Paraná, existem muito mais terreiros do que no Rio de Janeiro ou em Salvador, por exemplo. O motivo seria evidente: naquelas cidades, onde a umbanda e o candomblé possuem mais adeptos, os centros seriam imensos pontos de encontro para centenas e até milhares de fiéis, herdeiros naturais da crença sincrética de seus pais e avós. Em Curitiba, ao contrário, os praticantes evitariam assumir publicamente a sua religião, dizendo-se preferencialmente católicos ou cardecistas.Mãe Alice, contudo, não se preocupa com a nova discriminação. "Eu passo por cima. A umbanda nunca foi bem aceita", lembra. "Mas agora eu atendo até advogado e médico." Há meio século, diz exercer sobre a sua assistência um poder de cura concedido pelos espíritos que recebe. O sacerdócio também exigiu que permanecesse solteira. Conta que, certa vez, curou um pretendente do alcoolismo, mas o Caboclo Serra Negra a preveniu: "Não o curei pra você. Você vai ficar sozinha pra sempre". Ela aceitou a sina. Hoje, aos 82 anos, antes da incorporação, bate três vezes, com força, a testa no assoalho do altar. Dança, canta, bebe litros de cerveja e fuma charutos enormes. Continua forte: "Não acredito que viemos do pó e voltaremos a ele. Somos espírito". Quem revela o segredo de sua saúde é o próprio Tranca-Rua: "Eu tiro a fumaça de dentro do meu ‘burro’. Faço tudo pra ela. Essa velha, sem mim, não sabe nem pitar".
Luís Henrique Pellanda

Um comentário:

Unknown disse...

Essa reportagem que foi feita em 2003, falava de uma pessoa, a Dna Alice, após essa reportagem houve muita procura das pessoas pelo centro. Em meados de 2010 essa senhora ficou mto doente e em 22/10/2010 ela veio a falecer e hoje o centro encontra-se fechado. A sra. Alice era minha tia, uma pessoa que me ensinou muito e que ainda hoje me traz mtas lembranças.

Silmara Perucelo